domingo, 22 de fevereiro de 2015

Conto: Doenças

39°C. Isso não era bom, nada bom. O crânio parecia inchado, endurecido, querendo irromper de dentro. Os olhos eram empurrados das suas cavidades, o suor brotava da pele. Que merda morar sozinha. Tentou alcançar o telefone, mas se distraiu com o movimento da sua mão, os dedos magros pareciam passarinhos sobrevoando o chão de piso laminado. Riu um riso mole e fúnebre. As maçãs do rosto protestaram, então ela tocou-as, acariciando a pele quente. Eu poderia fritar um ovo no meu rosto. Riu aquele mesmo riso. Voltou a olhar os passaredos, dedorinhos, riu riu riu. Que jogo bestinha. Bestinha é uma palavra engraçada. Riu riu, as maçãs do rosto protestaram de novo. Tudo bem queridas, vou manter a face imóvel. Esticou o braço e finalmente alcançou o telefone. Discou uma vez, errou os números. Acertou na segunda e teria comemorado se não estivesse se sentindo tão miserável.

- Alô?

- Mãe? É a Clara. Eu... Eu estava lembrando de quando a gente empinava pipa, sabe? Acabei de ver o amarelo do termômetro e o vermelho da minha unha e tudo se combinou, entendeu? Tudo. Era muito bom aquele tempo.

- Você já se medicou, filha? 

- Acho que não tem remédio aqui... 

- Já estou indo aí, não se cubra demais.

Tutututututututu e ouviu o som até enjoar. Parecia até bonito, mesmo dando a sensação de abandono de sempre.

E dali a vinte minutos chegou a mãe com a sacolinha da farmácia. Clara sorriu levemente. Aquela sacola plástica parecia o maior gesto de carinho do mundo. A pipa amarela e vermelha. O pacote de dois quilos de bala de goma.

- Toma aqui esse remédio deve ajudar com a temperatura... Ah filha, você está queimando!

- É, deve ter sido o sereno ou coisa parecida...

- Não é hora de tirar sarro. Vou buscar um copo d'água.

- Não é sarro mãe, ai. Trouxe pra dor de cabeça também? 

- Trouxe.

Um comprimido, dois comprimidos, água água água. Veio a mãe com uma toalha molhada, colocou na testa de Clara. 

- Você tinha remédios aqui, sabia?

- É?

- No armário da cozinha, como da última vez...

- Eu te incomodei né? Que idiotice, 26 anos nessa cara suada e não lembro de onde guardei os remédios no mês passado... Mas eu bem que lembrei da pipa hoje.

- Não incomodou. Mas eu acho que...

- Oi? 

- Se você quiser, posso ficar por aqui essa noite. Você está precisando de cuidado.

- É?

- Sim.

- Obrigada mãe, valeu... Eu não sou mais criança sabe, mas acho bom...

Foi caindo no sono lentamente. A mãe só observava agridocemente. A bem sucedida, auto-suficiente Clara. Só gente muito orgulhosa somatiza saudade e nostalgia.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Poema: Beleza sem Lei

As folhas da árvore filtraram a luz do Sol,
O Astro Rei e as pequeninas verdes se completavam.
A beleza me abençoou, ali, naquele momento.

Ninguém me convenceu da beleza daquilo;
Não vi aquela fotografia em capa de revista alguma.
Eu só senti.

Então, minhas bochechas viraram leito
E, em todo meu ser, desaguaram
Dois riachinhos de água pura.


segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Conto: Ela foi vista

 O metrô deslizava veloz nos trilhos. E eu estava lá sentado, a cara cinza, o dia cinza e tudo o mais. Isso foi até ela chegar.

Entrou pela porta mais próxima de mim. Quanta sorte eu tive! Pude ver aquela moça caminhar e sentar-se no banco vago bem na minha frente. Eu nem merecia tamanha poesia.

Victor,o verme, diante daquela estrela, fita de cetim, floresta silenciosa. Ela parecia aquela... bonequinha de luxo. Elegante, mas não fútil. Aquela imagem era só casca para uma alma que flutuava acima daquele metrô, daquela cidade, daquela galáxia. O olhar distante e triste dizia tudo, contava de uma vida de sonhos ainda não alcançados e de um peso quase insuspeitável, disfarçado pelas roupas bem escolhidas, bem combinadas e bem colocadas no corpo esbelto.

Seria tudo isso? Ou seria nada disso? Só sei que, naqueles minutos, acreditei em toda essa história. E era real.

E eu queria que ela fosse minha, até perceber que isso seria impossível. Me distanciei de toda a idealização e olhei-a poeticamente, porém cortei os exageros. E consegui ver a clavícula levemente saltada e a orelha de abano. E vi o essencial no fundo dos olhos castanhos: era uma criatura selvagem. Nunca seria minha, nem mesmo se quisesse estar comigo; era um beija-flor, as asas ligeiras, o coração pulsante. Era mulher.


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  Olá, quanto tempo! Abandonei o blog, admito; parei de postar música da semana, simplesmente me rendi ao mundo acadêmico e a outros passatempos e diversões no tempo livre. Porém, ainda acredito que é interessante manter este espaço, então voltei neste finzinho de férias para dizer que pretendo continuar postando textos por aqui. Por enquanto não vou estabelecer seções fixas nem nada do tipo, mas quero pensar em um novo layout e em coisas interessantes para compartilhar. 

  E vou pensar... Mas com calma. Depois. Quando eu estiver com vontade. Pois só assim o Rindo das Nuvens pode seguir rindo, sem obrigações.

Até mais! Ah, sugestões são sempre bem-vindas ;)